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Cena Deletada - Safira de Prata



Acho que preciso inserir um pouco de background antes: Safira e Howl eram personagens inteiramente diferentes e nada desenvolvidos. Nessa versão anterior, Safira tinha acabado de se transformar e estava fugindo de Eiko, mas dessa vez ele supostamente tinha um "aval", porque Lother (que costumava se chamar Lothe) a tinha prometido em casamento a ele (sem que a garota soubesse). Howl já havia lhe escolhido como par e ela não sabia, e ele também não tinha admitido. Nye e Demina também eram diferentes das personagens que conhecemos hoje, e a história da primeira Lunar também é contada de modo distinto, como verão.


Me adianto e me desculpo pela gramática xula, as crases no lugar errado, as sentenças pobremente montadas. Mas tudo que sinto quanto olho para elas é orgulho, porque consigo notar o quanto cresci e melhorei na escrita. Espero que percebam também!


E de todo modo, também espero que gostem.





Eiko estava praticamente em seus calcanhares.

Mesmo com a perna ferida, ele era incrivelmente rápido. Safira constantemente tropeçava em raízes e pedras que a atrasavam. Ela não tinha tanta desenvoltura para correr como loba, e isso custara muito. Agora o macho estava rosnando atrás dela, parecendo bem mais furioso do que antes.

Safira se obrigou a acelerar e conseguiu ver as luzes das cabanas perto. Suas patas quase falharam de alívio. Uma voz gritou em sua mente:

Pare, garota estúpida! Pare!

Era Eiko. Era assim que licantropos da mesma alcateia se comunicavam na forma de lobo. Uma parte dela se desesperou por achar que teria de obedecê-lo, mas as ondas de dominância não vieram. Ela continuou correndo sem incômodo algum por resistir às ordens dele.

Porém o lobo negro saltou à frente dela num impulso repentino, e Safira escorregou para desviar-se dele. A loba bateu na parede de uma cabana com força, ganindo. Estava encurralada. A fêmea abaixou-se e mostrou os dentes num desafio claro.

Eiko parecia ainda mais furioso, e seu lobo olhava de um lado para o outro sem parar. Como se temendo alguma testemunha. Ele voltou-se para ela.

Você estará morta antes que saibam o que é.

E atacou.

Os dois rolaram pela terra, mordendo e arranhando de uma maneira brutal e selvagem. Safira cravou os dentes no lombo do macho e ele rugiu, atirando as garras contra o pescoço dela. Os cortes sangraram e a loba ganiu baixinho, a dor desacelerando seus ataques. Ela lutara e dera tudo que tinha. Morreria, mas dera boas cicatrizes à Eiko. Isso a consolou um pouco.

Ele fechou a bocarra em sua garganta e a loba cerrou os olhos.

Eiko foi arrancado para longe dela com brusquidão. Os dentes rasgaram sua pele, mas isso ainda era melhor do que ter a cabeça mordida para fora do corpo. Safira se ergueu com dificuldade, mancando de uma pata, para encontrar um enorme lobo escuro com manchas brancas rosnando à sua frente, protegendo-a de Eiko. Ela reconheceria-o em qualquer lugar.

Howl?

O lobo se retesou, olhando para ela com assombro nos olhos dourados.

Safira? a voz incrédula do rapaz ecoou na mente dela.

Saia do meu caminho, sibilou Eiko, arreganhando os dentes.

Howl voltou a atenção para ele, rugindo.

Você atacou uma Lunar. Será expulso dessa alcateia.

Ela era minha para tomar!

O lobo negro com manchas brancas avançou, em cólera. Seu primeiro golpe manchou a terra de sangue quando a barriga do adversário se abriu num rasgo. Eiko revidou com uma mordida no flanco, que desacelerou o ataque de Howl, mas não o parou. O futuro alfa atirou o licantropo longe, e já partia para o próxima investida, quando o próprio alfa alcançou a luta.

Basta! — Lothe manteve o tom baixo, mas escorrendo comando. Os dois não tiveram escolha a não ser obedecer. — O que houve aqui?

Howl arfava.

Pai, esse bastardo atacou Safira.

—Safira? — a surpresa reluziu nos olhos do líder da matilha por alguns instantes. — Safira era a Lunar em perigo?

Sem a adrenalina correndo em suas veias e o perigo iminente, a loba ferida sentiu seu corpo se retesar e mudar. Ela ganiu baixinho quando o processo de transformação se reverteu, deixando uma adolescente maltrapilha, nua e sangrando no lugar. A menina tremeu de frio e se cobriu com as mãos, vermelha de vergonha.

Howl já estava ao seu lado, também na forma humana, agarrando um manto sobre uma tenda e envolvendo Safira com ele delicadamente. Ela corou ainda mais, se obrigando a desviar o olhar do corpo do rapaz, também descoberto como o dela.

—Obrigada.

Ele assentiu, encarando Safira de um modo peculiar. Então se voltou para Eiko, já transformado como eles. Sua irmã estava ao seu lado, segurando algumas roupas e olhando para a jovem no chão com algo como... Medo? Ela nem tinha visto Mykaela chegando. Mas pelo visto eles agora tinham uma pequena plateia.

Howl chegara até ela a tempo para ajudar porque assumira a forma de lobo, mas só agora os outros alcançaram a cena. Todos estavam encarando-a com assombro. Vaska correu imediatamente para Safira, o rosto bonito preenchido de espanto. Will, logo atrás dela, arfou ao vê-la.

—Safira — gaguejou, bestificado. — Seu cabelo. Seus olhos.

—O quê? — ela segurou a manta no lugar com uma mão e levou a outra à cabeça, procurando o que o amigo via de errado nela. Seus dedos agarraram uma mecha e ela arquejou. —Que diabos..?

Estava branca.

Todo o cabelo dela estava branco.

—Você está morto — murmurou Howl, num tom mortalmente baixo, e Eiko trincou a mandíbula. O rapaz já tinha vestido uma calça que Yan lhe trouxera, e este último olhava para o irmão de Mykaela com uma expressão quase igualmente assassina.

—Ninguém está morto. Ainda. — Lothe lançou um olhar enviesado a Eiko. — Vocês três, comigo. Agora.

Vaska ajudou Safira a se levantar e seu pescoço latejou, sangrando. Ela sibilou.

—Pai, ela precisa de cuidados — o próprio Howl tinha hematomas pelo peito e um corte na sobrancelha, mas não parecia sentir dor alguma.

—Yan, leve Demina até nós. Explique a situação.

O beta assentiu e correu para longe. Will colocou seu casaco em volta de Safira, que sorriu agradecida.

—Vou levar roupas para você — sussurrou Vaska, com um olhar preocupado. — Boa sorte.

Safira engoliu em seco, mas seguiu o alfa com relutância. Ela se sentia estranhamente leve e não conseguia identificar o porquê. Howl se postou protetoramente atrás de Safira, tão perto que conseguia sentir o calor dele emanando até ela. O rapaz olhava ameaçadoramente para Eiko, que seguia à frente sem demonstrar nada no rosto. Howl parecia capaz de pular no licantropo se ele sequer respirasse errado.

—O que está acontecendo? — sussurrou Safira, nervosa. — Por que meu cabelo está branco? Isso sai?

Ele voltou os olhos para ela, e sua voz estava surpreendentemente branda.

—Demina vai explicar tudo a você, eu prometo.

Ela respirou fundo, os lábios tremendo. Olhou para Eiko e esperou o medo, mas só sentiu raiva. Sua loba estava ensandecida, querendo rasgar o caminho para fora dela e fazê-lo em pedaços. Ela estava em cólera, e a jovem notou que ela nunca fora tão presente. Sua forma animal sempre fora contida, inferior. Agora ela ocupava algo como uma parte enorme de Safira, rosnando e se mostrando como nunca. Forte, poderosa. A garota gostou daquilo. Era como se devesse ser assim desde o início. Safira não era submissa, ela era uma guerreira.

Eles chegaram à cabana e entraram em silêncio. A garota passou pela janela da varanda e tentou ver seu reflexo. Quando íris prateadas a encararam de volta, a licantropa soltou um arquejo bestificado.

—O quê...

Howl agarrou sua mão, e arrepios subiram pelo braço dela.

—Você vai entender em breve — jurou, sério.

Safira assentiu fracamente, boquiaberta demais para responder.

A pessoa que lhe encarara de volta no reflexo não era nada como ela esperava. Aquela garota parecia... Parecia uma licantropa pura. Uma loba atraente e exótica, com cabelos brancos de luar e olhos de prata intensos. Nada como a aparência sem graça de antes, com olhos e mechas castanhas comuns. Ela estava assustada, mas uma pequena parte dela gostou do que viu.

Gostou de verdade.

—Falem — Lother se recostou contra a mesa de carvalho polida, a face austera. — Você primeiro, garota. O que houve essa noite?

Eiko focou os olhos nela, a ameaça clara como água.

Se disser algo, vai pagar caro.

Safira devolveu o olhar na mesma medida.

—Eiko tentou me matar.

Howl avançou.

Ele conseguiu acertar dois socos potentes antes que Lother o segurasse, prendendo os braços do filho ensandecido.

—Eu vou matá-lo!

Eiko cuspiu sangue, abrindo um sorriso debochado e manchado de vermelho.

—Quieto, garoto — o alfa afastou o filho do outro macho, se colocando entre eles. — Eu dei Safira a ele.

—Como disse?! — arfou o rapaz.

O sorriso do bastardo se expandiu.

—Você fez o quê? — rosnou Safira.

Lother olhou para ela, ainda incerto.

—Eu não concordei com violação nenhuma — explicou-se. — Ele pediu para tê-la como companheira, e eu autorizei.

—Como pôde? — ela sibilou, horrorizada. — Eu não sou uma propriedade para que você me dê para os outros, principalmente para um monstro como esse!

Eiko bufou, e a única coisa que parecia impedir Howl de matá-lo bem ali era o choque.

—Pensei que seria vantajoso para você — o alfa justificou. — Era uma loba submissa e subdesenvolvida, e Eiko é um macho dominante que te queria. Aya disse que você aceitaria, já que sairia ganhando.

Aya.

É claro que ela tinha um dedo nisso, espumou a jovem.

—Minha mãe teria vergonha do que fez — cuspiu Howl. — Ela nunca teria concordado com isso!

—Controle essa língua, garoto. — Lother murmurou, letal.

—Isso é a coisa mais ridícula que eu já ouvi! — gritou Safira, indignada. — Quer que eu lhe conte o verdadeiro motivo por ele ter me pedido a você?! Esse idiota queria atingir seu filho. Você ia me autorizar e me ligar à um psicopata pelo resto da vida!

Silêncio.

Lother franziu a testa e observou Howl, que tremia em fúria.

—Opção? — ecoou. — O que ela quer dizer com opção? Você ia rejeitar Mykaela sem me consultar para tomar uma submissa?

Safira bufou, com raiva e incrédula. É claro que era nisso que ele prestaria atenção. Seu precioso sucessor nunca poderia se dignar a trocar uma licantropa pura por uma mestiça ninguém.

O filho encarou o alfa.

—Meu lobo a escolheu.

Safira esqueceu como se respirava.

É claro que escolheu.

E é claro que ele não contara a ela.

Eiko revirou os olhos, e Lothe arregalou os dele.

—Bom — grunhiu. — Isso muda um pouco as coisas. Quando aconteceu?

—Durante o festival da colheita.

Duas semanas antes.

E ele não tinha pensado em mencionar?! Em dizer?

Safira se lembrou de todas as vezes em que Howl fora possessivo em relação a ela. A jovem não vira ele ter as mesmas reações com Mykaela. Ele já tinha escolhido-a há todo esse tempo? Seu coração estava tão acelerado que ela tinha certeza de que eles podiam ouvi-lo sem super audição com facilidade. Ela abriu a boca para se revoltar com Howl quando Demina, acompanhada de Vaska, entrou na sala, parecendo muito transtornada. Qual não foi a surpresa dela quando Nye entrou atrás, igualmente preocupada. A menina teve vontade de chorar ao ver a criadora.

A mulher olhou diretamente para ela e arquejou.

—Oh, criança — Safira voou para os braços da loba anciã, que abraçou-a de volta sem hesitação. Seu ombro latejou, mas a garota ignorou a dor. — Eu ouvi o Clamor. Nunca pensei que escutaria aquele som de novo.

—Sim, sim — debochou Eiko. — Acho que até as malditas das alcateias longínquas ouviram aquela droga.

Demina virou-se para o licantropo com os olhos em brasa.

—Você está em sérios problemas, rapaz.

—O alfa já me justificou — Eiko deu de ombros.

—Não é assim que eu me lembro —Lothe ergueu uma sobrancelha.

—Não me importa qual justificativa você teve — sibilou a sacerdotisa. — Quando você fere uma protegida de Diana está ofendendo a própria deusa. Você maculou sua linhagem. Envergonhou esta matilha. Envergonhou sua espécie.

—Ela não era uma Lunar, antes! — replicou ele, começando a empalidecer diante do tom da mulher. — Ela me atacou, eu não estava pensando com clareza.

—O inferno que não estava! — Safira se enfureceu. — Você disse que me mataria antes que todos soubessem o que eu era!

—Cale a boca, cadela mestiça!

Howl envolveu as mãos ao redor do pescoço de Eiko em alguns milésimos de segundo. Nye e Vaska pareciam querer entrar na fila para fazer o mesmo. Lothe observava a cena com desinteresse enquanto o garoto sufocava no aperto do filho.

—Mas ela não é mais só uma mestiça, é, Eiko? — Demina sorriu, vitoriosa. — Ela é uma Lunar, e acima dela na alcateia, só o Alfa e eu. Você ousou atentar contra a vida dela, tendo consciência disso ou não. Por isso, como membro do conselho, eu iniciarei uma exigência para expulsá-lo dessa alcateia em desonra.

—Não p-pode fazer isso! — ofegou Eiko, ainda sendo enforcado por Howl, que mostrava os dentes em deboche. — Meu pai foi o último alfa! Eu sou o sétimo macho na hierarquia!

—Na verdade — interrompeu Vaska, com uma expressão de repulsa. — Agora você é o oitavo. Mas acho que em breve nem na hierarquia você vai estar.

—Mykaela é a futura Diana! — Eiko se agarrava à qualquer chance de argumentação existente, a realidade da situação atingindo-o com força. — Ela não permitirá isso!

—E eu não permitirei que meu neto tome como companheira a irmã de um macho imundo e prepotente como você — Nye ameaçou, segurando a mão de Safira com força. A garota sentia seu coração prestes a explodir. Estavam intercedendo por ela. Não estava mais sozinha. — Safira está sob minha proteção. Mykaela é uma ameaça à vida dela. Devemos expulsá-la, também.

—Não! — gritou Eiko. Seus ombros se abaixaram, derrotados, e ele se jogou de joelhos no chão. — Por favor. Deixem-na fora disso, ela não sabe de nada. Mykaela não merece ser expulsa, eu aceito o julgamento, só... Só deixem minha irmã ficar. Por favor.

—Vocês dois deviam voltar para o mesmo buraco de onde vieram — chiou Vaska, avançando para o rapaz miserável.

Lothe impediu-a.

—Você pode fazer melhor que chutar um macho caído, menina.

—Mas é tão divertido — sua amiga fez um bico desapontado, e Nye riu com presunção.

—Já chega — cortou o alfa. — Fora daqui, rapaz. Amanhã o conselho decidirá seu destino. Ônix, se assegure de que ele não deixe o território da matilha até lá. Nye. Você e Demina tem muito que explicar à garota. Enquanto isso — soltou um suspiro exasperado. — Eu preciso de algo forte.

Eiko se arrastou noite afora com os olhos furiosos de Howl queimando suas costas. A sacerdotisa da alcateia segurou a mão livre de Safira, os olhos dourados numa cautela suave. Era como se temesse que a menina saísse correndo ao sinal do menor movimento brusco. Talvez ela saísse, mesmo.

—Você deve ter perguntas, Safira — Demina seguiu para um dos quartos. — Venha conosco.

Nye sorriu, encorajadora.

—Quer que eu fique? — perguntou Howl.

Ela queria.

Howl trazia a ela um sentimento de segurança que com certeza acalmaria seu coração descompassado. Ela ainda estava com raiva por ele não ter dito que seu lobo escolhera-a, mas isso não significava que não queria-o por perto. Começou a assentir com o queixo quando a loba mais velha intercedeu:

—Acho que Safira tem de fazer isso sozinha, filhote — replicou a avó, num tom muito sério para se ignorar.

Ele roçou os dedos nos dela com receio, e a garota prendeu o fôlego. Queria tanto pegar sua mão. Queria tanto que ele se abrisse para ela, explicasse as coisas. Estava cansada de tantas dúvidas e resposta nenhuma.

—Estarei logo ali, se precisar de mim — ele mirou-a uma última vez, parecendo frustrado, e deu-lhe as costas.

Safira suspirou.

—Dê um tempo a ele — Nye entrelaçou o braço no dela com carinho. A jovem se surpreendeu com o quão mansa a loba aparentava naquele momento, mas não reclamou. — É difícil para um macho como ele se adequar a uma ligação. Você vai ver, em algum tempo terá-o de joelhos.

Ela conseguiu dar uma risada fraca, que logo morreu quando notou Demina esperando-a pacientemente na porta. Nye apertou seu pulso em incentivo e a moça tomou coragem. Aquela era uma parte dela, agora, e queria saber como e de onde viera. Safira respirou fundo.

E entrou no quarto.

(...)

Depois que Safira terminou de vestir as roupas quentes e confortáveis que Vaska lhe trouxera — ela suspeitava que eram de Will, porque a amiga não tinha nada de quente ou confortável — , Demina julgou-a calma o suficiente para não sair correndo, e tratou dos seus ferimentos com eficiência. O processo de cura dela agora parecia estranhamente mais rápido, então a mordida no ombro estava quase boa. Nye iniciou-se com uma simples pergunta:

—Sabe o que é uma Lunar, não sabe, Safira?

A garota olhou ao redor, nervosa.

—Sei que sua filha era uma — hesitou, insegura sobre citar a mãe de Howl. Sabia que a memória de Temise ainda era presente para os que amavam-na.

Nye sorriu, tranquila.

—Sim, ela era — a loba dirigiu-se à janela, o olhar perdido em lembranças. — Minha filha se tornou uma Protegida da deusa ao lutar pela vida do meu neto, quando ele ainda estava em seu útero.

—Mas para entender como vocês duas foram presenteadas com essa benção — Demina começou, seus olhos assumindo um tom prateado denso, a voz mudando para um tenor profundo e antigo. — Você primeiro tem de ouvir a história da primeira licantropa a receber tal honra...


Há muitos anos, mais do que se pode contar, a deusa Diana andava entre nós. Ela se disfarçava e observava suas crias, olhava por elas.

Uma dessas crias se chamava Noret. Ela era uma licantropa pura, de uma linhagem longínqua, conhecida pela beleza e bondade. Ela era a filha do beta da sua alcateia, e vivia feliz em meio à sua família e ao seu povo, nas montanhas geladas ao norte de Leyan. Ela era a aprendiz da sacerdotisa da matilha, extremamente devota à deusa. Por causa da índole pacífica, a maioria julgava-a inofensiva.

Estavam errados.

Durante um passeio noturno onde Noret ousou ir mais longe do que o recomendado da alcateia, ela encontrou um lupino ferido. A criatura estava morrendo, e qualquer outro dentre os seus teria deixado-o lá para perecer. Mas a jovem, não. Ela escondeu-o numa caverna nas montanhas depois que ele voltou à forma humana e cuidou dos ferimentos do homem até que estivesse recuperado. Quando ele acordou, ficou deslumbrado com Noret. Seu nome era Ruki. Ele devia-a sua vida por não tê-lo matado e em vez disso, curado-o. Ela não era nada como ele tinha pensado sobre licantropos, e ele não se parecia em nada com uma aberração sanguinária, como ela havia ouvido a vida inteira.

Noret continuou cuidando do rapaz.

O tempo passou, e a cada visita os dois se aproximavam mais. Logo a garota estava passando mais tempo com o paciente do que em sua própria casa. A família achava estranho, mas Noret sempre fora um espírito livre. Lupinos podiam ser mais fortes, mas não tinham magia no sangue como licantropos, e tinham um processo de cura quase tão lento quanto os humanos, por isso o jovem passou semanas nas cavernas com Noret. Mesmo quando ele estava bom o suficiente para retornar ao seu bando, não quis deixá-la.

Estavam amando.

Sabiam que ambas as alcateias não permitiriam uma união do tipo, e o pai de Noret mataria Ruki quando descobrisse. Então os dois jovens fugiram, com Noret rezando pela proteção de Diana enquanto corriam por suas vidas. O casal era cuidadoso. Eles se isolaram na floresta, caçavam para sobreviver e eram discretos. Por anos, tudo estava bem. Ruki mantinha distância da amada durante as noites de lua cheia, para que seus instintos violentos não provocassem mal à ela. Juntos, eles tiveram um filho.

O primeiro híbrido licantropo e lupino.

Deram à ele o nome de Licht, pois ele era a luz dos amantes em tempos escuros de fugas e perseguições. Mas o nascimento de tal criança não passou despercebids sacerdotisas. Mesmo a deusa estava preocupada com o destino do filho de inimigos jurados. Foi decidido no conselho ancião que a criatura devia ser destruída, já que não sabiam o que ela representava ou que perigo poderia ser para as alcateias. As bruxas aliadas aos lupinos concluíram o mesmo, e alertaram-nos à respeito do nascimento. Ambas as espécies enviaram assassinos para findar a vida recém-nascida do híbrido.

Numa noite calma de lua minguante, na qual Ruki não tinha chance alguma de representar ameaça, o a casa dos amantes foi atacada. Pela primeira vez em que se tem registro, lupinos e licantropos trabalharam em conjunto com um objetivo em comum: eliminar a criança.

Os dois amantes lutaram com tudo que tinham. Acreditavam merecer a felicidade e a paz, já que nunca desejaram o mal a ninguém e não feriram nenhuma pobre alma nos anos afastados. Tudo que queriam era viver em harmonia.

Mas tal querer não impediu a morte de Ruki.

Por ser a alcateia mais próxima, o alfa de Noret enviou seu beta, o pai dela, para acabar com a aberração. Quando o homem chegou ao local e viu que sua amada filha há muito desaparecida tinha copulado com um lupino e dado à luz à um monstro, perdeu a cabeça. O rapaz não teve chance alguma contra o pai da amante.

Quando viu o corpo de Ruki cair, seu amor e amigo por anos, a jovem quebrou.

Apertando o filho nos braços e vendo a morte dele se aproximar nas mãos do seu próprio pai, a menina fez a única coisa que lhe dava paz nos momentos de desespero e rogou à Diana.

A deusa ouviu.

Diana não achava justo que sua fiel criança perdesse tudo que amava e prezava. Ela tinha um apreço especial por Noret, pois a menina sempre procurava conselhos e respostas nela. Seu bebê, apesar de ser um híbrido, tinha apenas semanas de vida e era inocente. Mas a jovem não tinha força ou habilidades o suficiente para salvar a si e ao seu filho e escapar dos seus agressores, então Diana decidiu dá-los à ela. A coragem e a força do coração dela eram mérito o bastante.

Um raio de luar puro atingiu a garota, e seus cabelos se tingiram de um branco etéreo. Os assassinos pararam, assustados. Da garganta de Noret, saiu o primeiro Clamor, um som que reduziu sua casa à destroços e arremessou os invasores à metros de distância. Horrorizados, eles correram. O pai de Noret fugiu e se exilou, envergonhado por ser a razão da tristeza e quase morte da filha.

A jovem se tornou a primeira Filha da Lua, pois foi como se Diana a tomasse nos braços e a protegesse como uma mãe.

A deusa puniu as sacerdotisas que votaram pela morte de Licht e seus pais, tirando seus dons e presenteando-os às que verdadeiramente mereciam. À essas novas servas, Diana instruiu que acolhessem Noret e a tratassem com respeito, porque a divindade a considerava sua, e qualquer ofensa que dirigissem à ela, estariam dirigindo à deusa, também.

Desde então, à toda fêmea que Diana julga merecedora da sua benção, que possui tanta força e coragem na alma quanto Noret possuía, ela presenteia com os dons da Lua.

E a cada vez que ela o faz, outra Lunar caminha pela terra.


Os olhos de Demina voltaram à cor dourada original, e Nye enxugou discretamente os olhos com o dorso da mão. Safira não tinha muita certeza se ainda estava respirando. De acordo com aquela lenda...

Ela era uma Filha da Lua.

A própria deusa Diana tinha abençoado-a.

—Isso não faz sentido — murmurou, aérea. — Eu não sou ninguém. Não sou corajosa ou forte, eu... Eu não merecia isso.

Ela estava tão pasma que não viu a avó de Howl se aproximando até que ela estava sentada na cama ao seu lado, os olhos dourados e tristes encarando-a intensamente.

—Está tão parecida com ela... — Nye respirou fundo, e a menina abaixou a cabeça, envergonhada. — É a minha vez de contar uma história, criança. Há não tanto tempo assim, uma menina com o mundo nas costas teve a oportunidade de se libertar desse fardo. Ela era altruísta e muito nobre para revogar seus deveres. Então, quando conseguiu, a menina tentou fugir do peso que nem era dela para carregar, mas ele voltou para cobrar seu preço. Ele era alto demais para que ela pagasse, era sujo e era imundo. Cansada de viver sob aquela pressão, a menina quase desistiu. O mundo exigia demais dela, machucava-a demais — Safira sentiu as lágrimas caírem ao pregar os olhos no assoalho. — Mas a garota resistiu. Ela lutou, porque sabia que merecia mais do que aquilo. À ela foi dada uma nova chance, uma nova vida. A menina era sim forte e corajosa, mas por causa do fardo que teve de carregar e do preço que quase foi obrigada a pagar, ela perdeu a fé em si mesma. Deixou de acreditar no próprio valor. Por isso ela se continha e se fechava, minando aquele brilho de fúria e revolta uma vez tão potente. E o preço... Cobrado por outros, mas ainda assim deplorável, veio novamente para subjugá-la. No entanto, a menina não queria, não iria pagar. Aquela não era sua natureza, aceitar calada e obedecer sem questionar. A alma dela era livre e pura, por isso à ela foi dada uma chave, para que se libertasse das correntes que ela própria havia criado em volta de si mesma. O que ela fará a partir de agora com essa chave, isso é uma coisa para a garota decidir sozinha.

A jovem ousou erguer a cabeça para fitar ambas as mulheres, que fitavam-na de volta em solidariedade.

Então escondeu o rosto no ombro de Nye e chorou.

Por horas.

A loba apenas envolveu-a com os braços magros e acariciou o cabelo de Safira com carinho.

—Não está mais sozinha, criança — repetia ela. — Divida o fardo.

E a menina deixou seu peito, cheio há tempo demais de angústia e medo, se esvaziar com cada soluço arfante. Seu corpo pequeno estremecia com força, mas era bom. Ela sentia que estava acumulando o sofrimento há anos, e ele precisaria de uma vazão em algum momento. E se sentiu extremamente grata por poder fazê-lo em meio à segurança, com pessoas que se importavam com ela. Então um estrondo sacudiu a estrutura.

Nye suspirou.

—Eu não queria ser indelicada, criança, mas acho que se você soltar mais uma fungada sequer, meu neto há de por essa casa abaixo.

Safira franziu a testa, esfregando os olhos inchados.

—O quê? Por que ele faria isso?

—É o seu lamento. Afeta-o em demasiado — a licantropa anciã olhou para a porta, como se pudesse enxergar Howl através da madeira. — Ele está tentando te dar o espaço que pedimos, mas seu lobo deve estar enlouquecido. A parceira que ele escolheu está sofrendo, e todos os seus instintos dizem que a razão desse fato é porque ele não a protegeu como deveria, que falhou com sua fêmea.

—Isso é absurdo. A culpa não é dele.

Nye sorriu, revirando os olhos.

—Machos, criança, você já deve ter percebido — a mulher lhe deu uma piscadela. — São criaturas absurdas.

—Absurdamente irritantes — completou Demina, fitando a porta com descaso. — Agora, Safira, suas perguntas. Deve ter várias.

Ela tinha. Só não sabia qual delas escolher primeiro. Foi pela mais preocupante, em sua opinião:

—Por que minha aparência mudou? Eu vou voltar ao normal?

—Não, a mudança é permanente — a sacerdotisa analisou os cabelos brancos e os olhos prateados da garota. — São a marca da proteção de Diana. Qualquer licantropo que conheça os costumes de uma alcateia e botar os olhos em você, te reconhecerá como uma Filha da Lua.

Ah, esplêndido. Uma placa flutuante de atenção sobre a cabeça dela.

—Por que meus olhos não retornaram à cor original? Eu ainda sou mestiça, não sou?

Nye e Demina trocaram expressões hesitantes.

—Sinceramente? É um mistério — a serva de Diana observou as íris douradas com curiosidade. — Você é a primeira a receber a benção com sangue misto. Talvez também seja uma marca sem registro, já que todas as outras lunares eram puras, não havia como notar a mudança.

—E minha loba? Por que só consegui me transformar agora?

—Minha teoria é que uma parte de você não aceitava o presente — Nye estreitou os olhos, pensativa. — Que o incidente funcionava como um bloqueio psicológico que fazia você reprimir sua loba cada vez mais. Você tinha tanto receio que a fez acreditar que era submissa quando na verdade, considerando sua índole, ela deveria ser uma das mais dominantes da alcateia.

—Mas eu era oprimida — replicou Safira. — A dominância me afetava muito. Doía.

—Mais uma prova que confirma o que eu lhe disse. Você se deixava afetar, seu medo te controlava — esclareceu. — Dominância não dói, criança. É um instinto em lobos submissos, obedecer o mais forte. Se sua loba lutava contra isso, é porque ela não era inferior. Não era natural para ela seguir ordens quando ela mesma podia ser a que ordenava. Você resistia à elas, não resistia?

—Sim — parou, insegura. — Mas no final eu era obrigada a ceder.

—Só porque você permitia.

—Eu não entendo.

—Não precisa aprender tudo numa noite, Safira — a voz de Demina era suave como seda. — Temos tempo. Deve estar cansada.

Estava exausta, para ser mais honesta. Ela tinha vestido as roupas de Will, mas ainda estava suja e tinha sangue seco em mais áreas do que conseguia ver. Sentia que desmaiaria — de cansaço ou desnorteamento, o que viesse primeiro.



E fim. Nunca terminei a cena, porque mudei tudo inteiramente.


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